Um dos melhores textos sobre a crise europeia foi publicado na Folha de S.Paulo pelo ex-tucano Luiz Carlos Bresser Pereira na última segunda. Ele diz a perspectiva do colapso do euro aumenta a cada dia, dada a insensibilidade da Alemanha em transformá-o em uma moeda nacional europeia. Os Estados Unidos e o Reino Unido, que foram os campeões da desregulação e da financeirização neoliberal, diz Bresser, estão em situação mais confortável porque "conservaram sua moeda nacional e, diante da crise, puderam exercer duplamente sua soberania monetária: depreciando tanto o dólar quanto a libra e emitindo moeda para aumentar a liquidez monetária e, assim, manter baixos os juros sobre a dívida pública", escreve Bresser Pereira.
Para o ex-ministro da Fazenda, ou o Banco Central Europeu toma o mesmo rumo, socorrendo seus países membros para estancar a crise financeira, ou o euro entrará em colapso e a única questão será saber se seu fim será ordenado ou caótico.
"A causa da crise de 2008 e da longa recessão dos países ricos foi a desregulamentação dos mercados financeiros, o aumento explosivo da dívida privada e a quebra dos bancos. Foi, em outras palavras, a crença neoliberal justificada "cientificamente" pela ortodoxia neoclássica que os mercados são autorregulados", diz Bresser.
Mas os europeus foram vítimas duas vezes dessa ortodoxia porque o Tratado de Maastricht, que criou, a moeda única, teve um pressuposto absurdo: a crença de que o setor privado estaria sempre equilibrado (o mercado é deus, não nos esqueçamos); daí se deduziu que a única preocupação deveria ser com o setor público.
A Lição de Anatomia do dr. Tulp, de Rembrandt |
O Tratado de Maastricht, de 1992, definiu que o déficit dos países da zona do Euro seria fixado em 3% e a dívida pública em 60% do PIB. Mas não houve a preocupação em estabelecer um limite para o endividamento privado e o endividamento dos países, ou seja, o déficit em conta corrente, lembra Bresser.
Por que não definiram também um limite para esse deficit em 3% do PIB?, pergunta o ex-ministro de FHC. Seria um segundo limite perfeitamente coerente com o limite de deficit público; se isso tivesse sido estabelecido, os sinais de alarme teriam soado muito antes e a crise - talvez - pudesse ter sido evitada.
"Afinal a crise do euro não foi originalmente uma crise fiscal (a qual só se configurou devido à necessidade de socorrer os bancos), mas de endividamento privado. Agora essa mesma ortodoxia não quer ouvir o clamor indignado dos povos. Diz que socorrer os países implica estimular a irresponsabilidade fiscal. Esta é uma visão que subestima a inteligência das pessoas", escreve Bresser.
Ora, que sentido faz países que tanto lutaram por autonomia nacional ter uma moeda sobre a qual não têm nenhum controle? Certamente muitos países já devem estar avaliando a alternativa de sair da moeda única. "Uma saída que mesmo que seja planejada, será traumática. Mas provavelmente melhor do que continuar a ter como "sua" uma moeda estrangeira, que não garante à nação segurança e soberania", conclui.
Seus ex-colegas de ninho devem estar arrepiados...
Outro belo texto sobre a crise é a do Clóvis Rossi, da quinta-feira da semana passada. Vale a pena republicá-lo:
Clóvis Rossi
Reino Unido é prova de que o fanatismo pela austeridade só provoca retrocessos na economia
O delicioso e sutil humor britânico olha para o canal da Mancha, em dias de nevoeiro, e diz orgulhosamente: "O continente está isolado".
São dias de nevoeiro intenso na Europa, mas não dá para dizer que as ilhas britânicas estão isoladas da tormenta sobre o continente.
Prova-o a greve dos funcionários públicos de ontem, que o "Guardian" batizou de a maior em mais de 30 anos, envolvendo algo em torno de 2 milhões de pessoas. Se a cronologia do jornal está correta, o Reino Unido está de volta aos anos de Margaret Thatcher, o período que quebrou a espinha dos sindicatos e estabeleceu o neoliberalismo.
A greve é uma resposta ao pacote de austeridade do governo David Cameron. Ou ao que o Nobel de Economia Paul Krugman chama de predomínio dos "fanáticos da dor".
A dor não é pequena nem pega só o setor público. "A economia em 2016 será 13% menor do que esperávamos há um par de anos e mais de 3% inferior ao que pensávamos faz seis meses, uma mudança extraordinária", disse à BBC o diretor do Instituto de Estudos Fiscais, Paul Johnson. Consequência óbvia, sempre segundo Johnson: "As pessoas vão ser muito mais pobres e só em 2015 voltarão aos níveis de 2001".
Tem razão, pois, o principal colunista do "Financial Times", Martin Wolf, ao afirmar que "o Reino Unido está caminhando para uma década perdida", como se as orgulhosas ilhas fossem uma Argentina ou um Brasil de antigamente, que também tiveram décadas perdidas.
O que é ainda mais revoltante é que a dor está sendo imposta sem que resolva os problemas do deficit e da dívida, ao contrário do que dizem fundamentalistas do mercado.
"A previsão é a de que o déficit e a dívida fiquem piores", escreve ainda Wolf, que já foi fundamentalista de mercado, mas perdeu pelo menos parte da fé como consequência da crise de 2008/2009. O colunista, uma das figuras mais instigantes que participa anualmente dos fóruns de Davos, escreve: "A lição talvez mais importante é que não temos uma mísera pista do que vai acontecer com a economia. Da mesma forma, enquanto o "chancellor" [George Osborne, equivalente a ministro da Economia] pensa que sabe como os mercados financeiros vão responder à menor mudança em seus planos, ele não sabe".
O que Wolf está querendo dizer é que tomar como palavra de Deus o ajuste fiscal puro e duro não é ciência, mas fé religiosa. Não resolve o problema imediato, tanto que o crescimento do Reino Unido no último trimestre do ano será zero, segundo o próprio Banco da Inglaterra. Nem alivia, por extensão, o desemprego, instalado em 8,3%, o mais alto desde 1996. Nem resolve o problema do crescimento a médio prazo, como mostra a perspectiva de "década perdida". Nem, por fim, alivia a dívida: a conta mais recente mostra que o endividamento no ano teoricamente eleitoral de 2015 terá que ser de € 79 bilhões, em vez dos € 33 bilhões até agora estimados.
Pena que o continente pareça de fato isolado das lições que emanam das ilhas e adote, por isso, o mesmo fanatismo da dor.
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