Passou praticamente em
branco, no Brasil, a data que marcou os 60 anos da morte do dirigente soviético
Josef Stálin (5 de março). Hoje, formou-se um consenso universal, à esquerda e
à direita, de que Stálin foi um tirano monstruoso e sanguinário, como se determinados
indivíduos fizessem a história por vontade própria, guiados por algum espírito
demoníaco. Ora, isso é pré-política. Quem estudar a época sem antolhos
ideológicos verá que, quando Stálin morreu, milhões de pessoas choraram sua
morte, e não apenas na União Soviética, mas em todo o mundo. É verdade que não
se sabia – ao menos a maioria – dos crimes cometidos por Stálin, que seriam
revelados somente três anos depois – no XX Congresso do Partido Comunista – e,
mas fortemente, em 1961, no XXI Congresso. Mas, na época, acreditem ou não,
havia um sentimento de genuína gratidão pelo papel que a URSS teve – com 30 milhões
de mortos – na derrota do nazi-fascismo. Hoje, essa informação fundamental para
se compreender aquela época trágica desaparece em nome do bom-mocismo ideológico.
O texto que apresento abaixo
é uma resenha do veterano comunista português Miguel Urbano Rodrigues, de 2009,
sobre o livro Stálin – História e crítica
de uma lenda negra, do marxista italiano Domenico Losurdo. Escrever com
isenção sobre Stálin e o período dramático que ele viveu não é tarefa fácil,
principalmente em tempos politicamente corretos e incorretos. Como bom
historiador, Losurdo se propõe a analisar o personagem à luz de documentos
históricos, sem ceder às tentações ou preconceitos ideológicas. E, como
demonstra a resenha, ele o consegue em larga medida. O personagem que emerge do
livro é um dirigente multifacetado, misto de gênio político e tirano, mas
jamais alguém redutível a esquemas preconcebidos. Podemos gostar ou não gostar
de Koba – aliás, quase ninguém gosta.
Mas não se pode deixar de analisá-lo dentro de um contexto histórico, apoiado
em fatos documentados, não em considerações metafísicas. Um relato histórico não
faz de Stálin um líder inocente, ou prisioneiro das férreas “leis da História”.
Mas é preciso deixar de lado os estereótipos e “fazer a história a contrapelo”,
como ensinava Walter Benjamin. Ou ainda, como pregava o filósofo iluminista
Immanuel Kant, Sapere aude! (ousar pensar). Às vezes é difícil, mas é
fundamental.
PS.: Amigos e companheiros
poderão pensar que virei stalinista. Não é verdade; apenas reafirmo o gosto
pela provocação...
Stálin, história e crítica de uma lenda negra – um
livro de Domenico Losurdo
Por Miguel Urbano Rodrigues
Há meses que me sento diante
do computador para escrever este artigo. Mas o projeto foi adiado dia após dia.
Quando Domenico Losurdo me
ofereceu Stalin – Storia e critica de una
leggenda nera, já lera criticas sobre a obra. Mas não a imaginava.
Qualquer texto sobre pessoas
que deixaram marcas profundas na história, quando escrito sem o suficiente
distanciamento temporal, cria sempre grandes problemas ao autor.
Vivi essa situação este ano
ao publicar um desambicioso artigo – Apontamentos sobre Trotsky – O mito e a
realidade. Em Portugal, alguns camaradas que admiro acusaram-me de trotskista;
no Brasil, onde o artigo, mais divulgado, desencadeou polêmicas, professores
das Universidades de Campinas e do Rio Grande do Sul dedicaram-me trabalhos
acadêmicos, definindo-me como stalinista ortodoxo.
Domenico Losurdo aborda no
seu Stálin aspectos muito polêmicos da intervenção na História do homem que na
prática dirigiu a União Soviética durante quase três décadas. Não conheço obra
comparável pela ausência de paixão e pela densidade e profundidade da reflexão
sobre o tema.
Stálin foi um revolucionário
que liderou a luta épica da União Soviética contra a barbárie nazi. Por si só
esse combate em defesa do seu povo e da humanidade garante-lhe um lugar no
panteão da História.
Sinto, contudo, a necessidade
de acrescentar que nunca senti atração por Stálin. Não admiro o homem. A sua
personalidade aparece-me inseparável de atos e comportamentos sociais que
reprovo e repudio.
A contradição não me impede
de escrever este artigo, estimula-me a assumir o desafio.
A DEMONIZAÇÃO DE STÁLIN
A demonização de Stálin
principiou nos anos 20, adquiriu proporções mundiais com o XX Congresso do
PCUS, foi retomada durante a Perestroika e prosseguiu após o desaparecimento da
União Soviética, embora com características diferentes. Ao proclamar “o fim do
comunismo”, a intelligentsia
burguesa, empenhada em demonstrar a inviabilidade do socialismo, diversificou a
ofensiva, atribuindo a Marx, Engels e Lênin grandes responsabilidades pelo
“fracasso inevitável da utopia socialista”. Stálin foi sobretudo visado como
criador e executor de uma técnica de governança ditatorial, monstruosa. A palavra
stalinismo entrou no léxico político como sinônimo de um sistema de poder
absoluto que teria negado o marxismo ao impor “o socialismo real” mediante
métodos criminosos.
Não são apenas acadêmicos
anticomunistas que satanizam Stálin. Dirigentes de partidos comunistas e
historiadores marxistas, alguns de prestígio mundial, emprestaram credibilidade
à condenação sem apelo de Stálin.
Eric Hobsbawm, o grande
historiador britânico que foi, na juventude, membro do Partido Comunista
inglês, esboça no seu livro A Era dos Extremos - Breve História do Século XX um
retrato totalmente negativo do estadista que anos antes fora por ele elogiado
como revolucionário merecedor da admiração da humanidade.
O peso do anátema é tão forte
que a Fundação Rosa Luxemburgo atribuiu em Janeiro passado um prêmio ao
historiador alemão Christoph Junke pelo seu livro Der lange Schatten des
Stalinismus, uma catilinária impiedosa sobre um “fenômeno histórico” que é
também “uma teoria e uma prática política” que exorciza.
DA ESPERANÇA À REALIDADE
Sobre Stálin e a sua época
foram escritos centenas de livros. Dos que li nenhum me impressionou tanto como
este. A esmagadora maioria condena o homem e a obra; uma minoria de
incondicionais faz a apologia do dirigente comunista e defende sem restrições a
sua intervenção na história. Um abismo separa os críticos como o polonês Isaac
Deutscher (trotskista) dos epígonos como o belga Ludo Martens (maoísta), dois
autores cujos livros foram publicados em português, no Brasil.
Losurdo, filósofo e historiador,
ao iluminar uma época e o homem que foi o timoneiro da URSS durante quase
trinta anos encaminha o leitor para uma reflexão complexa, inesperada e
difícil. Não assume o papel de juiz.