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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O ABSURDO E A REVOLTA

Albert Camus (1913-1960)

“O sentimento do absurdo, quando dele se pretende, em primeiro lugar, tirar uma regra de ação, torna o homicídio pelo menos indiferente e, por consequência, possível. Se não se acredita em nada, se nada possui um sentido e se não podemos afirmar nenhum valor, tudo se torna possível e tudo carece de importância. O pró e o contra deixam de existir e o assassino não tem nem deixa de ter razão.”    
(Camus, O Homem Revoltado, 1951)

“O absurdo só morre quando dele nos afastamos. Uma das únicas posições filosóficas coerentes é, dessa forma, a revolta. Ela é um confronto perpétuo do homem e de sua própria obscuridade. É a exigência de uma possível transparência. E, a cada segundo, questiona o mundo de novo. Assim como o perigo oferece ao homem possibilidades insubstituíveis de tomada de consciência, assim a revolta metafísica dilata a consciência ao longo da experiência. Ela é a presença constante do homem a si próprio. Essa revolta não passa da certeza de um destino esmagador, mas sem a resignação que deveria acompanhá-la” (Camus, O Mito de Sísifo, 1942)

PREGANDO NO DESERTO



 O veterano jornalista Uri Avnery é um dos últimos remanescentes da velha tradição socialista e pacifista israelense. Neste texto, ele escreve sobre dois pontos fora da curva: o premiê israelense Benjamin Netanyahu e o candidato republicano à Casa Branca, Mitt Romney. Perto desses dois, direitistas como Richard Nixon e Menachem Begin eram estadistas progressistas...     

Um matrimônio de imbecis: Romney e Netanyahu
Uri Avnery – Sin Permiso – no Carta Maior

Certa feita o presidente Richard Nixon queria nomear um certo advogado para a Corte Suprema dos EUA. “Mas este homem é um completo idiota!” - exclamou um senador. “O quê?” Respondeu outro. “Há um grande número de idiotas nos EUA, e que têm direito a estarem representados na corte, tanto como qualquer outro setor da sociedade”.

Talvez os Imbecis Unidos da América tenham o direito a eleger Mitt Romney como presidente. Mas para o bem dos EUA e de Israel, espero que isso não aconteça.

Há quem diga que Israel é o estado número 51 da União. Alguns dizem que é o primeiro dos 51. Seja como for, nossas vidas – e talvez nossas mortes – dependem em grande medida do homem da Casa Branca. Assim é que, com todas as minhas dúvidas (e tenho muitas) a respeito de Barack Obama, tenho grandes esperanças na sua reeleição. 

Em seu último ataque de sabedoria, Romney não apenas revelou que 47% dos estadunidenses são parasitas, mas também que “os palestinos” querem destruir Israel. Segundo ele, o conflito entre Israel e os palestinos não têm solução, seguirá para sempre. Eu me pergunto de onde vem tamanha genialidade.

Na Alemanha nazista houve um certo Herr Doktor Ott Dietrich, um funcionário do Ministério da Propaganda. Todos os dias da semana ele reunia os editores dos jornais mais importantes de Berlim e lhes dizia quais seriam as manchetes e os editoriais do dia seguinte. 

Isso aconteceu antes da internet e do fax. Hoje em dia, o gabinete do Primeiro Ministro envia mensagens por fax diariamente para os ministros de Netanyahu e outros palhaços a quem lhes diz quais mensagens devem difundir.

Tenho a firme suspeita de que Romney lê esta página de mensagem logo antes de se reunir em suas atividades de campanha que estão repletas de multimilionários (ou meros milionários). Afinal de contas, ele não é capaz de inventar tamanhos disparates por si mesmo, ou é?

“Os palestinos” significa “todos os palestinos”. Os nove milhões deles na Cisjordânia, em Jerusalém do Leste, na Faixa de Gaza, de Israel, sem esquecer dos refugiados mundo afora.

Bom, suponho que se, por intervenção divina, Israel venha a desaparecer do mapa, muito poucos palestinos derramarão uma lágrima. Como tampouco muitos israelenses derramariam uma lágrima se, de novo por intervenção divina, todos os palestinos desaparecessem. Seriam também poucos os israelenses que ofereceriam ajuda a Deus, todo poderoso, nessa tarefa. Quem sabe, se os amigos evangélicos de Romney orarem o suficiente, seu Deus possa talvez desmaterializar todos os russos, os chineses, os coreanos do norte, os iranianos e uma variedade de outros “malfeitores”.

Por desgraça, essas fantasias pertencem aos reinos dos sonhos e dos pesadelos. No mundo real, os povos não desaparecem nem depois de grandes esforços genocidas, nem tampouco podem os estados que possuam bombas nucleares serem erradicados por seus inimigos estrangeiros. 

Há conosco muitos palestinos e nenhum deles acredita que Israel possa ser aniquilado. Desde que Yasser Arafat decidiu, em fins de 1973, que devia chegar a um acordo com Israel, a grande maioria dos palestinos quer um acordo que lhes permita estabelecer um estado próprio numa parte da Palestina histórica. Isto é o que se conhece como “a solução dos dois estados”.

O atual governo de Israel não quer isto, porque ele não está disposto a renunciar a 22% da Palestina histórica, que se converteria no Estado da Palestina. E, ao não oferecer uma alternativa razoável, os porta-vozes do governo afirmam que “este conflito não tem solução”.

Um dos pais desse lema é Ehud Barak. Depois do encontro fracassado de Camp David, em 2000, Barak, então Primeiro Ministro, pronunciou a célebre frase: “não temos nenhum sócio para a paz”. Dado que Barak era a causa principal da reunião, passei a chama-lo de “criminoso de guerra”.

Agradecido, Netanyahu reconheceu a afirmação de Barak e hoje a grande maioria de Israel acredita de forma implícita nesta mensagem. Há pouco tempo fui entrevistado por um jornalista dinamarquês e lhe disse: ...quando terminarmos, pare o primeiro táxi e pergunte ao motorista a respeito da paz e ele lhe dirá: “A paz seria maravilhosa. Estou até disposto a devolver todos os territórios pela paz. Mas infelizmente os árabes nunca farão a paz conosco”. Uma hora depois. Uma hora depois o jornalista me ligou, emocionado. “Fiz exatamente o que você me disse e o motorista repetiu suas palavras, uma por uma”.

“Não há solução” parece significar “tudo continuará como está”. Isso é um erro. Nada fica como está. As coisas se movem o tempo todo, os assentamentos se ampliam, os palestinos voltarão a organizar levantes e o mundo está em mudança constante, o mundo árabe muda, algum dia o presidente estadunidense porá os interesses dos EUA à frente do de Israel. Onde estaremos, então?

A essência da afirmação de Romney é que a solução de dois Estados está morta. Isto me lembra a famosa frase de Mark Twain: “O comunicado de minha morte foi um pouco exagerado”.
Agora está na moda dizê-lo. Toda uma tendência. No entanto, pessoas diferentes têm razões diferentes para acreditar que a solução dos dois Estados está morta. 

Os pais, os mestres, os pedófilos e os canibais todos dizem que amam as crianças. Mas seus motivos não são os mesmos. Isso também é verdade para os aspirantes a sepultadores da solução dos dois estados. Estes incluem, de um lado: idealistas que desejam que as pessoas de diferentes nações vivam juntas em harmonia e igualdade, num só estado. (Eu gostaria que estudassem a história da União Soviética, da Yugoslávia, da Tchecoslováquia, do Chipre, do Sudão e a situação atual dos franceses no Canadá, dos escoceses na Grã Bretanha, dos flamengos na Bélgica e dos bascos e catalães, na Espanha). De outro, incluem: os árabes, que realmente acreditam que esta solução é um modo pacífico de se desfazer de Israel. 

Em terceiro lugar: os assentados, que querem converter a totalidade da Palestina histórica em seu domínio e, se possível, “limpar” o país de não-judeus. 

Em quarto: os israelenses, que acreditam que os assentamentos em territórios palestinos criaram uma situação que é “irreversível” (Meron Benvenisti, um ex-tenente da cidade de Jerusalém, cunhou esta frase já em 1980, quando havia menos de 100 mil moradores nessas áreas, no lugar. Eu lhe disse, então, que nada é irreversível, exceto a morte. As situações criadas pelo seres humanos podem ser alteradas por outros seres humanos).

Em quinto: os anti-sionistas, inclusive os judeus anti-sionistas, que odeiam o sionismo indiscriminadamente, com todos os seus bons e maus aspectos, e para quem a existência de um estado “judeu’ é uma abominação. 

Sexto: os fanáticos muçulmanos, que creem que a Palestina é território muçulmano, pelo que ceder qualquer parte dela a não-muçulmanos é um pecado mortal. 

Em sétimo: os fanáticos judeus, que acreditam que todo Eretz-Israel, desde o Nilo até o Eufrates lhes foi prometido por Deus, pelo que ceder uma parte sua a não-judeus é um pecado mortal.

Em oitavo lugar: os fanáticos cristãos, que creem que a segunda vinda do Cristo será possível somente depois da reunião de todos os judeus neste país (sem lugar nele para ninguém mais). 

Desculpo-me se esqueci de alguém.

Algumas dessas pessoas inventaram algo chamado “solução de um estado”. Isso é um oximoro. Se existe o “problema de um só estado”, não há solução de um só estado.

De vez em quando vale a pena voltar aos fatos fundamentais de nossa vida: Há dois povos que vivem neste país. Nenhum deles vai desaparecer: estão aqui para ficar. Por ora os árabes palestinos que vivem no país seguem sendo uma minoria, mas em breve constituirão maioria. Ambos os povos são intensamente nacionalistas. Ambos têm diferentes culturas, línguas, religiões, relatos históricos, estruturas sociais, padrões de vida. Na atualidade, depois de uns 130 anos de conflito contínuo, há ódio intenso entre eles. 

A possibilidade de que esses dois povos possam viver em paz sob um só estado, servindo no mesmo exército e polícia, pagando os mesmos impostos e cumprindo as mesmas leis promulgadas por um mesmo parlamento comum, é nula.

A possibilidade de que estes dois povos possam viver em paz lado a lado em dois estados, cada um com sua própria bandeira e seu próprio governo eleito (e sua própria equipe de futebol), essa sim, existe. Esta coexistência pode assumir diferentes formas: desde uma confederação com a abertura de fronteiras e a livre circulação até estruturas como a da União Europeia.

Espero que isso não seja demasiado complicado para Mitt Romney entender. Mas isso pode ser irrelevante se – como espero fervorosamente – ele não for eleito. Não gostaria que um ignorante tivesse a oportunidade de aprender os assuntos do mundo sobre as nossas costas.

Uri Avnery é um escritor israelense e ativista pela paz do movimento Gush Shalom.

Tradução: Katarina Peixoto

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A CIVILIZADA BANDA ORIENTAL

Não, não estamos falando de uma banda de rock da Índia, mas do Uruguai, país que já foi chamado Banda Oriental do Rio Uruguai.  
Manifestação em frente ao Congresso
A Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou, por 50 votos a 49, o projeto que descriminaliza o aborto no país até a 12ª semana de gestação; 14ª se houver estupro e prazo indeterminado se houver risco de vida para a mãe. O texto aprovado substitui a palavra “legalização” por “descriminalização” e deixa claro que a decisão final cabe apenas à mulher. As interessadas deverão ser submetidas a uma comissão de médicos e assistentes sociais que as informarão sobre as alternativas. Depois de cinco dias, a mulher decidirá se quer manter ou interromper a gravidez. O projeto diz que o aborto não será penalizado desde que a mulher cumpra essas exigências e o procedimento será feito em centros de saúde supervisionados pelo governo.

O projeto vai agora ao Senado, onde não terá dificuldades para ser aprovado. Com isso, o Uruguai se tornará o primeiro país da América do Sul a descriminalizar o aborto; em toda a América Latina, a prática é legalizada apenas em Cuba. A proposta do partido do governo, a Frente Ampla (centro-esquerda), tinha sido rejeitada em duas outras oportunidades. Na última delas, em 2008, o projeto fora aprovado pelo Congresso, mas vetado pelo então presidente Tabaré Vázquez, que justificou sua decisão devido a “razões filosóficas e biológicas” e provocou uma crise na Frente Ampla. O atual presidente, José Pepe Mujica já anunciou que não vetará o projeto.

Duramente criticado pelos conservadores dos partidos tradicionais, Blanco e Colorado, e por grupos religiosos, o projeto recebeu apoio de organizações e entidades de defesa dos direitos civis. Durante a sessão na Câmara, mulheres nuas com os corpos pintados cercaram o prédio do Legislativo do Uruguai para demonstrar apoio à proposta. Os grupos contrários ao texto também foram até o local do protesto.

O presidente José Battle votando 
Ao lado da proposta de legalização da maconha para combater o narcotráfico, feito há meses pelo presidente Mujica, a descriminalização do aborto faz com que o Uruguai retome sua tradição de país culturalmente liberal e socialmente avançado. Desde o início do século XX, a partir do governo de José Battle y Ordoñez, o Uruguai caracterizou-se por ser um país de leis de vanguarda na América Latina. Battle, presidente entre 1903 e 1915, introduziu uma avançada legislação trabalhista – um welfare state avant la lettre –, colocou os bancos sob controle do governo e concedeu crédito aos agricultores. Também encorajou a construção de portos, fábricas e edifícios públicos. Em 1907 foi aprovada a lei de divórcio (sete décadas antes de todos seus vizinhos); em 1932, o Uruguai se tornou o segundo país das Américas a conceder o direito de voto às mulheres (o primeiro foi os EUA). A República Oriental ficou conhecida como “Suíça da América do Sul”, mas nos anos 1970 o Uruguai sofreria, como seus vizinhos, sob as botas de uma sangrenta ditadura militar. Mesmo assim, em 1980 os uruguaios rejeitaram um plebiscito em que os militares tentaram institucionalizar a ditadura. O país voltou à democracia em 1985.    
A partir de 2004, com a ascensão da Frente Ampla ao poder, o Uruguai voltou a ser vanguarda. Em 2007, o país se tornou o primeiro Estado latino-americano a fazer uma lei de união civil entre pessoas do mesmo sexo. Em 2008 o Parlamento aprovou lei que pune os pais que inflijam punições físicas a seus filhos; em 2009 o Congresso abriu as portas para a adoção de crianças por parte de casais homossexuais e, no ano seguinte, houve o fim das restrições à entrada de homossexuais nas Forças Armadas.
O presidente José Pepe Mujica
O Uruguai também é considerado o país mais laico das Américas. O juramento de posse do presidente exclui qualquer referência a Deus já que ele jura por sua honra pessoal e a Constituição. O país já teve vários presidentes declaradamente ateus e agnósticos e nunca ninguém se escandalizou com isso. Não há crucifixos no Parlamento, nem nas repartições públicas. Menos de 50% da população é declaradamente católica, enquanto que outros 40,4% não têm nenhuma filiação religiosa.
Ai, que inveja!

terça-feira, 25 de setembro de 2012

UM BOM COMEÇO



Henning Boilesen, um dos financiadores da repressão
A Comissão da Verdade resolveu colocar o dedo numa das feridas mais malcheirosas do Brasil: ela vai investigar o financiamento de grandes empresas e de empresários à repressão política. Esse financiamento permitiu à ditadura, no início dos anos 1970, racionalizar e sistematizar os esforços de repressão política, antes esparsos e descentralizados. Nascia assim a Oban – Operação Bandeirante –, embrião dos famigerados DOI-Codis, responsáveis pela tortura e morte sistemáticas de centenas de militantes e combatentes contra a ditadura. 

Henning Albert Boilesen e Peri Igel (Grupo Ultra); Sebastião Camargo (Camargo Correa); Amador Aguiar (Bradesco); Adolpho Lindenberg (Construtora Lindenberg); Gastão Eduardo Bueno Vidigal (Mercantil); as empresas Ford, GM, Ultragás, Mappin e os bancos Mercantil de São Paulo e o Sudameris, entre outros, foram alguns dos principais financiadores da Oban. Entre os poucos empresários que se recusaram a colaborar estavam José Midlin (Cofap) e Antonio Ermírio de Moraes (Votorantin).

A Oban foi constituída em 1969 como um centro de informações, investigações e torturas que integrava elementos das Forças Armadas e da polícia estadual para o trabalho de combate à “subversão”. O órgão foi montado entre as ruas Tomás Carvalhal e Tutóia, nos fundos do 36º DP de São Paulo. Participaram do lançamento o governador Roberto de Abreu Sodré, o prefeito Paulo Maluf, o secretário de Segurança Pública, Hely Lopes Meirelles, o comandante do II Exército, general José Canavarro Pereira, e os comandantes do VI Distrito Naval e da 4ª Zona Aérea.

Herzog assassinado no DOI-Codi 
A Oban foi integrada depois na estrutura do DOI-Codi do II Exército, que ficaria conhecido como “o porão dos porões”. Por lá passaram 6.700 pessoas, das quais centenas foram torturadas e 50 assassinadas, entre elas o jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e o operário Manuel Fiel Filho, em 1976. As mortes destes dois últimos levaram o general Geisel a demitir o comandante do II Exército, general Ednardo Dávila Mello. O mais famoso chefe do DOI-Codi foi o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, até agora o único torturador da ditadura processado pela Justiça no Brasil.

Figueiredo e Médici: mandantes 
Outro grande passo dado pela Comissão da Verdade foi a determinação de se buscar a cadeia de comando que ordenou o sequestro, tortura, morte e desaparecimento de militantes. A Comissão partiu da constatação que os policiais e militares que participaram das operações não agiam por conta própria, mas cumpriam ordens dentro de uma estrutura hierárquica. “A tortura foi uma política de Estado durante a ditadura”, lembrou o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro. Para ele, não interessam à Comissão apenas informações sobre os agentes acusados de violações de direitos humanos, em grande parte conhecidos. “Queremos saber de onde vinham as ordens para a execução dessa política”.

Veja o filme "Cidadão Boilensen", sobre o empresário de origem dinamarquês que se envolveu de corpo e alma com a repressão e foi "justiçado" por guerrilheiros da ALN. 


segunda-feira, 24 de setembro de 2012

TERRA ESTRANGEIRA

Um tema pouco veiculado na mídia nacional, a flexibilização da venda de terras a estrangeiros, está tramitando no Congresso Nacional sem o necessário debate.

A desnacionalização fundiária

Mauro Santayana, em Carta Maior 


Percival Farquhar
Há cem anos, sobre um vasto território entre o Paraná e Santa Catarina, uma empresa norte-americana, a Southern Brazil Lumber & Colonization, reinava absoluta. Com a maioria de empregados norte-americanos, contratados por Percival Farquhar, que pretendia transformar o Brasil em vasta empresa de sua propriedade, a Lumber abatia todas as árvores de valor comercial, da imbuia à araucária. Todas as manhãs, ao som de um gramofone, os empregados – incluídos os brasileiros – reunidos na sede da empresa, em Três Barras, entoavam o hino norte-americano, The Star-Spangled Banner, enquanto a bandeira de listras e estrelas era hasteada. Ao anoitecer, repetia-se a cerimônia, ao recolher-se o pavilhão. Ali mandavam e desmandavam os ianques. O imenso espaço em que se moviam os homens de Farquhar estava fora da jurisdição brasileira. 
Prisioneiros da Guerra do Contestado
Embora não houvesse sido a única razão do conflito, a Lumber esteve no centro da Guerra do Contestado, um dos mais épicos movimentos de afirmação nacionalista do povo brasileiro. Nele, houve de tudo, dos interesses econômicos de Farquhar e seus assalariados pertencentes às oligarquias políticas, ao fanatismo religioso, em que não faltou uma Joana d’Arc – a menina Maria Rosa morta aos 15 anos na beira do Rio Caçador, lutando como homem.

Enquanto houver nações, a terra, o sangue e a honra continuarão unidos para dar corpo ao que chamávamos pátria, e de que nos esquecemos hoje. Quem conhece história sabe que os movimentos internacionalistas, quase sempre a serviço dos impérios, acabam sendo vencidos pelos sentimentos mais poderosos dos povos identificados pela cultura, pelas crenças – e pela língua. Nós podemos conhecer muitas línguas, mas só saberemos expressar os sentimentos mais fortes naquela que aprendemos dos lábios maternos. Podemos conhecer todas as paisagens do mundo, mas só nos identificamos com aquelas que os nossos olhos descobriram sob o sol da infância.

Mas há duas formas de pisar o chão pátrio: a dos ricos e a dos pobres. 

Isso explica por que os grandes agronegocistas brasileiros estão pressionando o governo e o Congresso, a fim de que sejam abolidas as restrições (já de si débeis) à aquisição de terras nacionais pelos estrangeiros. Eles querem ganhar, ao se associarem aos capitais de fora ou participando da especulação de terras. Calcula-se que mais de um por cento das terras brasileiras já pertençam, e de forma legalizada, aos alienígenas. A essa enorme área há que se acrescentar glebas imensas, adquiridas de forma subreptícia, e sem conhecimento público, porque os cartórios de imóveis estão dispensados de registrar a nacionalidade dos compradores. 

O Congresso está para aprovar a flexibilização das leis que regulam o assunto, ao estender à agropecuária a Doutrina Fernando Henrique Cardoso, que considera empresa nacional qualquer uma que se estabelecer no Brasil, com o dinheiro vindo de onde vier e controlada por quem for, e que tenha sua sede em Nova Iorque ou nas Ilhas Virgens. 

Nós tivemos, no século 19, uma equivocada política colonizadora, que concentrou, nos estados meridionais, a presença de imigrantes europeus. 

Isso implicou a criação de enclaves culturais que se revelariam antinacionais, durante os anos 30 e 40 do século passado. Foi difícil ao Brasil conter a quinta-coluna nazista e fascista que se aliava ao projeto de Hitler de estabelecer, no Cone Sul, a sua Germânia Austral. O governo de Vargas foi compelido a atos de firmeza – alguns com violência – a fim de manter a nossa soberania na região. Só no Piauí, a venda de glebas aos estrangeiros aumentou em 138% entre 2007 e 2010. São terras especiais, como as do sudoeste da Bahia, que estão sendo ocupadas até mesmo por neozelandeses.

Estamos em momento histórico delicado, em que os recursos naturais passam a ser disputados com desespero por todos. As terras férteis e molhadas, de que somos os maiores senhores do mundo, são a garantia da sobrevivência no futuro que está chegando, célere. Nosso território não nos foi doado. Nós o conquistamos, e sobre ele mantivemos a soberania, com muito sangue e sacrifícios imensos. Não podemos cedê-los aos estrangeiros, a menos que estejamos dispostos a viver contidos em nossa própria pátria, desviando-nos das colônias estrangeiras, cada uma delas marcada por bandeira diferente.

Ao contrário da liberalização que pretendem alguns parlamentares do agronegócio, que esperam um investimento de 60 bilhões na produção de soja e milho transgênicos no país – o que devemos fazer, e com urgência, é restringir, mais ainda, a venda de terras aos estrangeiros, sejam pessoas físicas ou jurídicas. Do contrário, e em tempo relativamente curto, teremos que expulsá-los, seja de que forma for, e enfrentar, provavelmente, a retaliação bélica de seus países de origem.

É melhor evitar tudo isso, antes que seja tarde.

Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

SE FICAR O BICHO PEGA; SE CORRER O BICHO COME

Wanderley Guilherme dos Santos

O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos disse, em entrevista ao jornal Valor Econômico, que o julgamento do mensalão será um “julgamento de exceção”. Isso porque os juízes do Supremo Tribunal Federal – a começar pelo relator do processo, ministro 
Joaquim Barbosa – estão condenando os réus com um discurso paralelo ao das tradições da corte. São condenações feitas com base em princípios duvidosos, como o “domínio do fato”, sem a fundamentação das decisões em provas concretas, mas em cima de meras evidências e ilações, como por exemplo, a de que, se houve aprovação de projetos de interesse do governo em determinado período, com as reformas da previdência e tributária, é porque houve mensalão. “A votação da reforma tributária não foi unânime, mas vários votos do PSDB e do DEM foram iguais aos governistas. Na reforma previdenciária, o PSDB votou unanimemente junto com o governo, na época o PFG também voto quase unanimemente. [...] É um erro de análise inaceitável pegar a votação de um partido e dizer que o voto foi comprado”, diz o professor.

Ministro Joaquim Barbosa, relator do mensalão
Por isso, contrariando vários outros analistas, Wanderley Guilherme diz que o julgamento do mensalão não será emblemático nem criará jurisprudência: “Acho que nunca mais vai acontecer. Até os juristas estão espantados com a quantidade de inovações que esse julgamento está propiciando, em vários ouros pontos, além da teoria do domínio do fato. Nunca vi um julgamento que inovasse em tantas coisas ao mesmo tempo. Duvido que um julgamento como esse aconteça de novo em relação a qualquer outro episódio semelhante”. E ele acrescenta: “Nunca mais haverá um julgamento em que se fale sobre flexibilização do uso de provas, sobre transferência do ônus da prova aos réus, não importa o que aconteça. Todo mundo pode ficar tranqüilo porque não vai acontecer de novo, é um julgamento de exceção”.

Fouquier-Tinville, promotor do Terror
Bem, confesso que não ficarei tranqüilo nem se não acontecer de novo, nem se acontecer. Se não acontecer, tudo não terá passado de um episódio estarrecedor, com o Supremo mudando regras consagradas pelo Direito para dar satisfação à opinião pública e à mídia e fazer um “julgamento exemplar”, condenando um partido mais por seus vínculos com os setores excluídos da população do que por seus desvios políticos, comuns a todos os demais. Neste caso, os procedimentos não se repetiriam quando outros partidos forem - se é que serão - julgados. Mas, se ocorrer o contrário e se criar jurisprudência, teremos institucionalizados esses procedimentos duvidosos e novidadeiros criados pelo Supremo, o que tornaria a exceção permanente. 
Ambas as hipóteses são situações de dar inveja a Fouquier-Tinville, o implacável promotor do Terror na fase jacobina da Revolução Francesa.    

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

CARLOS NELSON COUTINHO (1943-2012)


Carlos Nelson Coutinho
O filósofo marxista Carlos Nelson Coutinho, morto hoje aos 69 anos, era um dos maiores especialistas no pensamento de Antonio Gramsci. Ele organizou e traduziu toda a obra do pensador italiano no Brasil – particularmente os volumosos Cadernos do Cárcere – e também é autor da elogiada tradução para o português de O Capital, de Karl Marx. Discípulo do filósofo marxista húngaro Georg Lukács, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde os 17 anos e adepto do Eurocomunismo – ao lado de Armênio Guedes, Leandro Konder e Luiz Werneck Vianna –, Coutinho rompeu com o “partidão” em 1982, depois do golpe militar na Polônia em 1981. Foi para o PT e depois para o PSOL. Nas pegadas de Gramsci, Palmiro Togliatti e Enrico Berlinguer, Coutinho foi um dos maiores defensores, no campo da esquerda marxista, da ideia de “democracia como valor universal”, que mais tarde ele aperfeiçoaria para “democratização como valor universal”.

Abaixo, trechos de uma entrevista que Carlos Nelson Coutinho concedeu em 2005 para a Revista Sem Terra:       

“No final dos anos 70, ainda sob a ditadura, houve um movimento associativista nas grandes cidades extremamente significativo, com a associação de moradores e favelados. Isso teve um papel importante no desgaste da ditadura e contribuiu para o fim do regime. Há um estudo que mostra que foram criadas mais associações no Rio de Janeiro, entre 1970 e 1980, que em todo o século 20. Foi um período muito rico. Portanto, é possível um associativismo urbano, inclusive de moradores de classe média e também favelados. Quem é culpado pela desativação do movimento social? É o PT ou o PT deu a guinada à direita porque o movimento social se enfraqueceu? Dialeticamente, são os dois fatores. Certamente, uma das nossas tarefas fundamentais é reativar o movimento social. O Gramsci tem uma frase muito bonita: um comunista deve combinar o pessimismo da inteligência com o otimismo da vontade. Não podemos ter ilusão na análise da realidade. Estamos vivendo uma realidade difícil. A esquerda está em retrocesso em todo o mundo. Tanto mais difícil é a situação tanto mais carecemos do otimismo da vontade para transformá-la. A análise pessimista não pode nos levar ao imobilismo. Ao contrário, deve nos levar a uma capacidade de ação e intervenção ainda maiores.”

Antonio Gramsci
“O Brasil é uma sociedade mais 'Ocidental' do que 'Oriental'. Há uma sociedade civil forte que se construiu e vem se construindo há décadas. Teve um papel importante na vida política brasileira no período dito populista. Foi reprimida duramente pela ditadura, e conseguiu se manter. Teve um papel decisivo no fim do regime militar. Mas há dois tipos de organização nas sociedades 'ocidentais': o modelo americano e o modelo ex-europeu — que está mudando. No modelo dos Estados Unidos, há uma sociedade civil organizada em torno de interesses puramente corporativos, com um associativismo limitado a questões extremamente particularistas. Faltam discussões dos grandes temas políticos. De maneira esquemática e simplificada, eu chamaria de 'ongzação'. Criou-se uma ideologia que redefine a sociedade civil com o reino do bem, do voluntariado e para além do Estado e do mercado. É um mito. A sociedade civil é terreno da luta de classes e de conflito profundo. Há uma tentativa de “americanização”. Querem transformar até mesmo o movimento operário em um instrumento puramente reivindicativo. É um risco.

[...]

“O sociólogo alemão conservador Robert Michels escreveu um livro chamado A sociologia dos partidos políticos, no qual faz um estudo empírico da social-democracia alemã para mostrar como um partido revolucionário e radical foi progressivamente se burocratizando e terminou por ser um partido pouquíssimo democrático integrado ao sistema. Michels chegou a criar uma 'lei de ferro da oligarquia': toda organização termina fatalmente oligárquica. Apesar de discordar da tese, é um risco real.”

[...]

“É um risco que inevitavelmente se correrá. Não é fatal que triunfe a burocratização. Eu continuo considerando o partido político como uma forma imprescindível na luta social. O partido revolucionário e transformador tem exatamente como função básica universalizar as demandas dos diferentes setores e colocar uma alternativa de sociedade. Para Gramsci, quando um partido não cumpre as suas funções, um intelectual importante, um jornal ou um grupo de jornais e um movimento podem ocupar a função. Se um partido não faz isso, um movimento social pode fazer, apesar de não poder ter a função precípua de um partido político.”


quarta-feira, 19 de setembro de 2012

ESTIRPE EM EXTINÇÃO



Santiago Carrillo, tendo ao fundo a foto da Pasionaria
Santiago Carrillo, que morreu no último dia 18 aos 97 anos, pertencia a uma estirpe de políticos em extinção. Comunista histórico desde a Guerra Civil (1936-1939), ele foi um típico stalinista, suspeito inclusive de ter responsabilidade nos massacres de Paracuellos (1936), em que milhares de prisioneiros foram assassinados por forças comunistas. Com a derrota dos republicanos e a vitória dos fascistas de Francisco Franco na guerra civil, Carrillo foi para o exílio, onde ficaria 38 anos entre Paris e Moscou. Neste período, ele viria várias vezes clandestinamente para a Espanha.

Carrilo (centro) entre Berlinguer (esq.) e Marchais
Virou líder do Partido Comunista Espanhol em 1960, substituindo a lendária Pasionária (Dolores Ibarrurí). Em 1964, Carrillo expulsou do partido Jorge Semprún e Fernando Claudín, “revisionistas” defensores uma transição pacífica que, anos mais tarde, o próprio Carrillo abraçaria. O stalinista convicto começaria a mudar a partir da invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, em 1968. Na década seguinte, junto com os líderes dos Partidos Comunistas da Itália (Enrico Berlinguer) e França (Georges Marchais), lançaria o Eurocomunismo, um movimento que afirmava a independência dos PCs em relação a Moscou e o compromisso destes com a democracia como “valor universal”, rompendo com o marxismo-leninismo soviético, que defendia a “democracia burguesa” apenas como tática para se atingir o poder.

No Parlamento, como deputado pelo PCE
O zênite de Carrillo foi a transição espanhola para a democracia. Foi quando ele se revelou um estadista. Carrillo não apenas participou das negociações do processo de democratização levado à cabo por Adolfo Suárez como reconheceu a autoridade do rei Juan Carlos – embora o PCE sempre tenha sido republicano – para levar a bom termo a transição. Demonstrou coragem pessoal quando militares franquistas tentaram dar um golpe invadindo as Cortes (Parlamento) em fevereiro de 1981. Carrillo foi um dos três deputados que se recusaram a obedecer as ordens do coronel Tejera Molino de se abaixar; ele ficou sentado fumando calmamente enquanto o militar esbravejava com uma pistola na mão. Acabou, ele mesmo, vítima de um expurgo e foi expulso do PCE em 1985.

Na tentativa de golpe, Carrillo (dir.) e Adolfo Suárez permanecem sentados
Para uns, Carrillo foi a síntese da grandeza e dos erros da Espanha e da esquerda no século XX. Nas palavras de Carlos Alonso Zaldívar, em relação do partido, ele quis ser “o papa e Martin Lutero ao mesmo tempo”. Mas Carrillo foi, sobretudo, um dos “pais fundadores” da democracia espanhola – ao lado de Adolfo Suárez e Felipe González, entre outros. O que veio depois é desolador. “A geração de políticos posterior à transição encontrou um mundo mais cômodo e acreditou que a política era um assunto de dinheiro e publicidade. Na realidade, nestes tempos na Europa e Estados Unidos se produziu uma tempestade conservadora que desregulou o mundo financeiro. Enquanto isso, na Espanha, os novos políticos se dedicavam a buscar senhas de identidade para legitimar-se à margem de seus predecessores. Quando veio a especulação imobiliária, todos só viram dinheiro e dinheiro. Até que começaram a cair raios e relâmpagos. Então, descobrimos que não tínhamos mais refúgio. [...] Onde procurar? Se se trata de encontrar a saída, temos que olhar para trás”, escreveu Carlos Alonso Zaldívar no El País.       

  
             

terça-feira, 18 de setembro de 2012

A OFENSIVA MIDIÁTICA


A Veja e a grande mídia mais uma vez destilam seu veneno fascistóide ao fazer pesadas acusações contra Lula. A fórmula é manjada: a Veja traz uma grave denúncia - sem mostrar provas - e imediatamente a matéria repercute em todos os outros grandes veículos. Prato cheio para a oposição. Depois, quando a denúncia se mostra insustentável, esquece-se o assunto. Mas o estrago está feito.

Desta vez, vieram com chamada de capa de uma "entrevista" de Marcos Valério em que ele acusa Lula de ser o chefe do "mensalão". Mas na matéria a revista admite que não entrevistou o publicitário e que obteve a informação junto a "amigos" dele. Depois, um jornalista da Globo veio com a história de que havia uma gravação com a entrevista. Mas Veja não divulgou a tal fita. Por que? E por que versões contraditórias sobre a "entrevista"?   

Nenhuma surpresa. Quem se lembra da "reporcagem" de um grampo que teria gravado uma conversa do senador Demóstenes Torres com o então presidente do STF Gilmar Mendes? O tal grampo nunca apareceu, mas a matéria derrubou o então diretor da Abin, delegado Paulo Lacerda, e enterrou a Operação Satiagaha da PF, que investigava o banqueiro Daniel Dantas.

E o que falar das inúmeras matérias da Veja que, depois se descobria, tinham como fonte o Carlinhos Cachoeira, comparsa de Demóstenes?        

Em matéria de "mal-caratismo", a mídia tupiniquim - com a Veja à frente - não fica nada a dever ao megaempresário Rupert Murdoch.
  
Atualmente, está em curso uma ofensiva para cortar as asas de Lula e do PT, isolando-os de Dilma Rousseff, que é bem avaliada e está segurando o país em meio à crise econômica. Mas não é só isso. Além de assumir o papel de partido político de oposição, a mídia tradicional está empenhada em defender, a ferro e fogo, o oligopólio conquistado pela permanência da “propriedade cruzada” – prática abolida em países desenvolvidos que permite que empresas de comunicação possam ser proprietárias, simultaneamente, de TVs, rádios, jornais, revistas e portais. Enquanto isso, o governo continua alimentando a grande mídia com gorda verba publicitária. 

Abaixo, vídeos com denúncias das maracutaias da Veja no caso Carlinhos Cachoeira; Jô Soares denunciando as práticas abusivas da Globo em 1987 e um impagável direito de resposta de 1994, em que Cid Moreira lê um texto de Leonel Brizola com ataques à Rede Globo...             




segunda-feira, 17 de setembro de 2012

MERAS COINCIDÊNCIAS...


Reflexões de um grande jornalista – e, agora, artista plástico – sobre as ‘coincidências’ nos incêndios das favelas de São Paulo e nas decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o “mensalão”.      
Os incêndios em favelas, o STF, as coincidências e a causalidade
Por Enio Squeff, em Carta Maior
 Os incêndios que destruíram mais de vinte favelas em São Paulo, talvez confirmem as versões veiculadas, até agora, de que tudo aconteceu por acaso. Os historiadores da arte, que têm muito mais meios para investigar certos eventos, costumam registrar acasos e coincidências em praticamente todas as épocas; o cubismo de Braque e Picasso, por exemplo, podem, de fato, ter nascido na mente dos dois artistas – mas há quem diga que as coisas eram inevitáveis; ambos os pintores eram próximos, um frequentava o ateliê do outro, mas muito de suas obras mostravam evidências que apontavam para a mesma direção. A destruição de favelas não tem nada a ver com a arte, certamente. Mas é uma evidência que alguém lucrará com os numerosos terrenos, por fim, liberados de famílias com seus parcos direitos, subitamente transformados em cinzas. O Supremo Tribunal Federal tem sido exemplar na conclusão de que as evidências falam por si. Como dizia e diz a escolástica da Igreja, as evidências existem em si mesmas, não precisam ser provadas.

São mundos paralelos, parece. Diz-se dos artistas que seriam sensores da raça: eles pegariam as coisas no ar e as transformariam em música, em quadros, em livros. Os agentes da construção civil são sensores das oportunidades, desde que existam terrenos baldios – aparentemente sem donos – há que aproveitá-los para os bons lucros, mas também para o consenso, principalmente brasileiro, de que a indústria da construção civil é a maior geradora de empregos para a mão de obra não especializada. Coincidências de fatos, coincidência de fatores. 

No fundo, talvez, se esteja no mundo das conjecturas. Aqui e ali elas aparecem para confirmar – ou não – certas evidências. É o que tem valido, parece, inclusive para o STF no julgamento do mensalão: certas evidências prescindiriam de provas. Não foi o que valeu para a condenação do ex-presidente Collor, que foi absolvido – mas é, enfim, o que pode valer agora contra aqueles com que a grande imprensa acedeu ao Procurador Geral da República – de que os “mensaleiros” seriam os maiores criminosos do Brasil. 

Há, é certo, algumas centenas de acusados e esperar por sentenças condenatórias já há anos e por terem se apropriado não de 50 mil reais, como aconteceu com um deputado – o primeiro a ser punido por causa do mensalão – mas por terem roubado bem mais que milhões. Inútil mencioná-los: cada brasileiro tem algum nome na sua lembrança. Tudo leva a crer, porém, que há a coincidência de o julgamento acontecer às vésperas das eleições municipais. E que isso deve valer também como um feliz acaso – aquele de que a grande imprensa tenha praticamente exigido a realização de um julgamento nesta época do ano; e com uma pressa talvez nunca havida antes na história do Judiciário deste país.

Foi, a propósito, mais ou menos o que teria concluído o ministro Joaquim Barbosa. Ao ser questionado por uma jornalista por que não julgar um mesmo crime que teria sido cometido anos antes, por um outro partido, em Minas Gerais – não em Brasília – ele teria respondido que é assim mesmo; que o Supremo Tribunal fora obrigado pela grande imprensa – leia-se “opinião pública” – a proceder a um juízo praticamente exigido, imposto, portanto, à Suprema Corte. E daí as justaposições. 

Muitos musicólogos vêem coincidências inauditas entre certas composições quase que saídas à mesma época em diferentes países. Por exemplo: há quem adivinhe que em algumas sinfonias assinadas por Beethoven, existam coincidentemente, certos procedimentos muito parecidos com as de um compositor chamado Méhul (Etienne Henry Nicolas, 1763-1817), e que foi um dos expoentes da música engajada da Revolução Francesa. Não há nada que indique, diga-se em tempo, que o STF esteja se deixando influenciar pela mídia hegemônica a propósito do caso chamado “mensalão”. Haveria apenas uma mera conjugação que as vagas acusatórias contras os membros de um partido, feitas pela mídia, devessem ser devidamente levadas em conta pela Suprema Corte e que ela, afinal, decidisse levar a coisa avante com uma rapidez nunca vista antes. No fim das contas, haveria uma grande coincidência entre o desejo da mídia e o animus da Corte Suprema do Brasil.

Assim também com os incêndios nas favelas da paulicéia. “Nunca dantes na história” de São Paulo aconteceram tantas queimas de barracos num único período de alguns meses. Tudo seria obra do acaso. Há, realmente, que se considerar a seca, os numerosos “gatos” como se dizem das ligações clandestinas feitas nas favelas. E o resto seria, então, a confluência de alguns fatores, como o vento forte, o descuido – essas coisas todas que fazem da história também uma errância imprevisível, sem o que nem por que.

Em meio a tantas combinações casuais, quem sabe se devesse, também, pensar na Providência Divina. Dever-se-ia a ela, apenas à Providência, uma concordância nunca havida com tanto celeridade entre os membros do Supremo Tribunal Federal no caso específico de um único processo. 

No tempo da Inquisição, era o que contava e muito. Se o acusado, jogado num poço profundo, com pesos, afundasse irremediavelmente, ficava claro que a Providência era que o fizera mergulhar no abismo. E na morte. Se acontecesse o contrário – eis que o milagre valia ao acusado contar com as benesses do Santo Ofício. Deus o tinha absolvido – era tão somente um milagre. Nem mesmo uma coincidência. Digamos que seja isso também que esteja acontecendo com as favelas de São Paulo. De repente, por coincidência, ou por desígnios divinos, há como que, por combustão espontânea – um curto circuito, uma faísca. Pronto, o resultado pode ser o inesperado: algumas mortes (que se vai fazer?), mas a queima rápida de casas, pessoas, e tudo mais. 

A escritora norte-americana Suzan Sontag contava que levou um susto quando leu o Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. A história de um sujeito já morto que conta a sua própria vida, ainda que desde o fundo da sua tumba, era exatamente o argumento que ela tinha escolhido para fazer um romance. Garantia que foi por acaso. Não é de se descrer; ao descobrir a coincidência, a escritora norte-americana dizia com toda a sinceridade, que a versão de Machado era muito melhor que a dela. 

As coincidências entre o que quer a mídia e a decisão do Supremo Tribunal Federal, de julgar o mensalão, casualmente, antes das eleições transparecem de fato o que talvez sejam – justamente apenas questões de querências – a da grande imprensa, de que um partido seja punido, embora as provas sejam principalmente evidências e não mais que isso. Quanto ao Supremo – bem ele tem lá as suas razões. Assim como os incêndios de favelas sugerem muitas causas, talvez não caibam ilações. Tudo se dá por obra do acaso. Como se dá entre Mehul e Beethoven. Ou entre Picasso, Braque e o cubismo.

Jorge Luis Borges dizia que quem acreditava em casualidades, não sabia da lei das causalidades. Será? Neste caso, haveria, então, explicações para tantas coincidências. Ou não? Mais uma vez, com a palavra a história, ou se quisermos, a verdade histórica, se é que isso exista. 


Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

O AFFAIR MONTEIRO LOBATO


Nesta postagem do Paulo Moreira Leite, uma análise sobre a questão do racismo nos livros de Monteiro Lobato que não cai na armadilha da simplificação maniqueísta. Esta simplificação pretende opor censura x liberdade de expressão, mas acaba evitando a discussão do cerne do problema, que é nossa vergonhosa herança colonial-escravista.    

Racismo entre nós

Paulo Moreira Leite, em seu blog

Eu já não era tão jovem quando se dizia que a melhor definição de bobo era do sujeito que não consegue mascar chiclete e andar ao mesmo tempo.
Acho que isso se aplica ao debate sobre Monteiro Lobato. É nosso maior autor infantil. Deixou uma obra densa e complexa, com várias contribuições  ao entendimento do país. Mas Lobato era um autor racista e isso não pode ser escondido nem disfarçado. Precisa ser reconhecido e discutido pelos brasileiros, num sinal de respeito por nossa história e pelas vítimas de uma atitude que nossa Constituição define com crime inafiançável. Creio que devemos esse favor às futuras gerações, já que pouco podemos fazer pelas passadas, além de realizar um esforço para conhecer e estudar as dores do  tempo em que viveram.

O racismo de Lobato aparece para crianças, quando ele fala do “beiço” de Tia Nastácia, de sua “carne preta” e chega a dizer que ela subia numa árvore como “macaca de carvão.” O racismo para adultos foi explicitado em sua correspondência privada. Em cartas, ele admitiu que sentia inveja dos norte-americanos porque  tinham sido capazes de formar uma organização como a Ku Klux Klan, associação terrorista que sequestrava, torturava e enforcava negros no Sul, como uma vingança pela abolição da escravatura.

Monteiro Lobato admirava o Ku Klux Klan
(Observação minha, Cláudio Camargo: para quem tem dúvida, basta ler o que Lobato escreveu sobre o KKK: “Um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”).

 Este aspecto da obra de Lobato é horrível e inaceitável, mas não é um traço pessoal do autor. É expressão do Brasil daquela época. Aprendi com Edward Said, um dos grandes autores de nosso tempo, indispensável para entendermos outro tipo de preconceito – contra povos árabes – que nenhum homem está 100% livre dos atrasos mentais de sua época. Estamos condenados a carregar, por herança familiar e social, as mazelas de nossa cultura e nosso meio. Podemos nos considerar felizes quando somos capazes de reconhecer e nos  emancipar de parte deles, em vez de apenas reproduzir e fortalecer as forças daninhas que foram interiorizadas em nossa formação. Mas ninguém é 100% livre de seu passado.

Fingir que o racismo não existe e denunciar toda reação como patrulha politicamente correta é um ato simplista, de quem se esconde atrás da liberdade de expressão para manter a discriminação e o preconceito.

Tia Nastácia, personagem de Monteiro Lobato
Quando Lobato escreveu muitos de seus livros infantis, a escravidão fora abolida há apenas 50 anos. Os antigos escravos eram marginalizados, discriminados e segregados.
Sem resposta aceitável para uma situação aberrante e vergonhosa, a cultura oficial brasileira daquela época olhava para estes brasileiros e tudo aquilo  que representavam como uma visão de superioridade – racismo. Era uma fora de jogá-los para fora da história. Sofriam porque mereciam. A escravidão, no fundo, era justa. Civilizava o negro, dizia outro grande escritor, José de Alencar, adversário empedernido da abolição, mesmo em 1888. A ciência explicava as raças e, com elas, as diferenças entre os homens, dizia o racismo científico que inspirava outro grande autor, Euclides da Cunha.

Num momento posterior, tentou-se adotar uma outra visão sobre essa condição do negro. A de que vivíamos numa democracia racial, onde todos eram iguais e não havia preconceito em função da cor da pele. Hipocrisia organizada, a ideologia da democracia racial atingiu um ponto maior de sofisticação a partir de um silogismo maroto. Já que os homens de ciência não reconhecem raça como um valor científico, biológico, e os homens são animais que acreditam na ciência, o racismo simplesmente não pode existir. Logo, quem denuncia o racismo fala de um fantasma.

Sabemos que tem gente que se julga muito inteligente e ganha a vida repetindo isso. 
Coisa de quem não sabe conviver com duas ideias diferentes. Racismo está na cultura, nos livros, no pensamento e, como vimos, em Monteiro Lobato. O porteiro da balada que cria dificuldade para deixar um negro entrar não tirou nota 10 em biologia, certo?

Gilberto Freyre: o racismo cordial?
Se você for honesto pode encontrar racismo até na obra de Gilberto Freyre, que não queria ser racista e  condenava o racismo quando era capaz de enxergá-lo – o que não acontecia sempre, como nós sabemos, a partir da regra de que ninguém zera sua herança cultural ou ideológica.   Freyre chega a atribuir o temperamento, a inteligência e outros traços de um indivíduo ao fato de ser descendente de branco, negro ou indígena. Dizia, por exemplo, que o negro possuía uma “energia sempre fresca e nova quando em contato com a floresta tropical,” sugerindo que isso explicava que fosse usado no trabalho duro do engenho. Comparando populações brasileiras, Freyre dizia que o caráter “alegre, expansivo, sociável, loquaz” dos brasileiros nascidos da Bahia, devia-se ao elemento “negróide” de sua constituição, em contraste com populações “tristonhas, aladas, sonsas e até sorumbáticas” de outros Estados, que seriam “menos influenciadas pelo sangue negro e mais pelo indígena.”

É esta herança que devemos debater, discutir e impedir que seja retransmitida às novas gerações.

Eu acho, por isso, que o racismo da obra de Lobato deve ser exposto e colocado, em sala de aula, nas conversas de pais e filhos e toda vez que uma criança passar por aquelas palavras horríveis, deprimentes – mas que, nós sabemos, fizeram parte da experiência de homens e mulheres de uma época.

Sou contra proibir uma obra de Lobato – e também seria contra proibir O Mercador de Veneza, de Shakespeare, com várias passagens contra judeus, sucesso absoluto junto a certo público na Alemanha nazista — embora eu entenda a indignação de quem teve essa ideia.

Entendo porque é humilhante ser ofendido e ouvir, como resposta: que pena, deve ser assim mesmo porque afinal de contas a Constituição garante a liberdade de expressão.
É verdade. Mas a Constituição garante, também, o respeito à dignidade de cada cidadão – e o racismo é uma forma brutal de ataque à dignidade.

Minha opinião é que cabe ao Estado, num país que teve a coragem de colocar o combate ao racismo na própria Constituição, ser coerente com seus princípios e tomar a iniciativa de combater o racismo aonde ele se encontra. Não vale esconder nem fingir que não existe.

É por isso que sou favorável à ideia que as edições de Caçadas de Pedrinho sejam acompanhadas de uma nota explicativa capaz de situar Lobato e seu tempo. Este debate deve ser feito, irá formar crianças e jovens melhores. É um dever com todos brasileiros. E não vai alterar num único milímetro a obra original.